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Os macacos, a pintura e uma casa de histórias

Já lá vão uns bons anos quando descobri Paula Rego. Tinha 14 anos e estava a percorrer colecções de pintores numa estante da biblioteca de Torres Vedras. Há uma colecção que se destaca e que me deixa petrificado. Hoje consigo visualizar a capa e a textura desse livro tão bem como se nele tivesse tocado há instantes. Adiei a visualização de um filme qualquer para me entregar a esta arte e desvendar um universo de contos tão profundos e inquietantes.

Ao longo dos anos fui me interessando pelos trabalhos de Paula Rego, principalmente aqueles que eram leiloados em quantias menos modestas. Olhava para eles e tentava desvendar que sensações haveriam provocado no coleccionador. Agora já desisti de o fazer, eles falam para nós, só no nosso tecido multi-cultural é que os podemos interpretar.

O reencontro com a obra de Paula de Rego de uma forma mais sólida ocorreu há umas semanas durante a tão esperada visita à sua Casa de Histórias em Cascais. O espaço e o alinhamento e disposição dos seus quadros foi extremamente bem conseguido. Pude ainda descobrir algumas fases da sua obra que desconhecia. Aconselho todos os que amam a arte livre a darem lá um saltinho.

Os quadros de Paula Rego revelam um grande poder de sentir. Não basta capturar o real. Eles transcendem-no. Tornam viva essa outra dimensão. A ilusão. A nudez. A crudelidade. A sedução. A denúncia. A inquietação. Percorrer uma pintura de Paula Rego significa ir mais além, sem medos de corromper o explicável. É uma resposta à indiferença do sentir.

Paula Rego 4701

(18/20)

Lisboa rende-se perante Mariza

O coliseu de Lisboa estremeceu e aplaudiu de pé Mariza durante todo o memorável concerto de dia 31 de Outubro!
Mariza esteve no seu melhor – confidente, segura e vocalmente estonteante!
Como já todos o sabem, tenho tamanha admiração por Mariza que se torna impossível caligrafar tal paixão, respeito e gratidão. Já se torna difícil contabilizar, mas nunca recordar, todos os concertos que já vi de Mariza. Esta descoberta remonta a 2001 e, desde esse momento, que uma grande identificação com a sua arte e forma de sentir me vêm acompanhando.

Na passada noite, Mariza trouxe-nos, do album Terra, noves temas. Interpretou brilhantemente Já Me Deixou, Morada Aberta, Tasco da Mouraria, Alfama, Rosa Branca, Minh’Alma, Beijo de Saudade e, com um sabor muito muito especial, apresentou-nos de forma segura e vertical o forte poema Recurso e íntima e saudosamente Vozes do Mar. O concerto ainda contou com o caloroso Chuva, o bairrista e livre Maria Lisboa, o sentido Primavera, os sorridentes Feira de Castro e Oiça lá ó Senhor Vinho, o clássico Meu Fado Meu, o apoteótico e laudatório Barco Negro e o único e arrepiante Ó Gente da Minha Terra.

Nota, também, extraordinária para a prestação dos músicos em palco. Marino de Freitas, no baixo acústico, Vicky Marques na bateria e percussão, Simon James, no piano e trompete, e, genialmente, Ângelo Freire na guitarra portuguesa e Diogo Clemente na viola de fado.

Mariza mostrou-se cúmplice para com o seu público e, entre sucessivas partilhas, reduziu o coliseu a uma taberna para interpretar acapella Zanguei-me Com Meu Amor.
A cantora perante aplausos e manifestos de reverência fez um encore de quatro temas, porque a hora já mais pouco permitia, devolvendo a honra e respeito ao seu público numa vénia demorada (interiorizada na sua recente passagem pelo Japão) e lançou-se com toda a força na notável e final interpretação de Cavaleiro Mongeiro.

(19/20)

Séraphine

Séraphine fala-nos de sensações e de uma arte sincera focada segundo um ângulo lúcido, rico e cru!
A imagem é um dos pontos fortes do filme. O desempenho de Yolande Moreau é notável. O argumento é forte. Tudo no filme está porque assim deve estar. Dá sentido e apela ao nosso sentir. O silêncio transborda sentido. Haja sentir e sentido. Os sentimentos de amor e compaixão são dispostos de forma clara.
Loucura e arte são questionadas. Mas aqui resultam de um modo de sentir profundo e singular, que vai apartando as personagens deste mundo. Seja pela pintura, pela espiritualidade ou pela música o importante é que nos encontremos.
Há algum tempo que um filme não me tocava como este o fez! Dimensão próxima…
Saio do filme com a imagem de um abraço a cercar uma árvore mais toda a restante natureza.

(17/20)

Simplesmente João

Maria João simboliza a liberdade e a criatividade musical e é a viva prova de que não devem existir barreiras na expressão artística de cada Eu
Simplesmente João.

Dia 1 de Outubro assisti ao meu décimo concerto da dupla João e Mário Laginha nos jardins do Palácio de Belém (19/20). Apesar da elevada expectativa, fui mais uma vez arrebatado pelos vocais surpreendentes de João. Indiscritível a quantidade de sensações que se colam a nós quando ouvimos as histórias desenhadas pelas mil e uma sonoridades de João. Toda a música assim deveria de ser. Verdadeira.
João é assim. Única. A sua voz carrega mil texturas e projecta-nos para sítios tão distintos como África, universos de fábulas ou para o imaginário black jazzistico.
Mário Laginha que já vai dispensando apresentações, esteve também e mais uma vez muito inspirado. É, na minha opinião, o melhor pianista português e, curiosamente, o único que consegue trazer o Oriente através das teclas.

O concerto começa com o tema Parrots and Lions, captando a atenção e conquistando o coração de todos os ouvintes. Segue-se a brilhante interpretação dos clássicos Goodbye Pork Pie Hat e I’ve Grown Accustomed to His Face, e dos originais Em Tão Pouco Escureceu Tanto e I Have a Heart Just Like Yours. Cada tema parece, nesta noite, ganhar um novo sentido e uma nova roupagem.
As grandes surpresas da noite aconteceram em quatro momentos. O primeiro ocorreu durante a interpretação de Há Gente Aqui, onde entre conversas e improvisos João lança-se emotiva e profundamente no fado. Segundo momento – a sempre memorável interpretação de Beatriz. O terceiro momento ocorreu durante o original Preto e Branco, música onde a brincadeira ritmo-melódica cede a um espaço mágico. De verdadeira recriação. De total improviso. O público levanta-se, arrebatado, e as palmas não cessam. Este momento dá direito ao regresso de João e Laginha ao palco para nos brindarem com uma fábula, despedindo-se em tom de sonho. When You Wish Upon a Star (your dreams come true).
No entanto, o momento mais alto da noite aconteceu em Cair do Céu. O conto de João intensificado pelo improvisado batuque de Laginha começou calmo e promissor. Aconteceu. João solta-se num improviso único. Explora sons. A arte nasce em todo o lado e a todo o momento. Não sei o que terá passado pela cabeça dos ouvintes. Ora um canto embruxado, ora um choro de uma criança, ora um balão a estilhaçar-se. A arte deve ser assim. Livre!

A noite terminou com um concerto dado por alunos da escola Hot Club, e com um bom e imprevisto encontro com a voz soulful da minha amiga Selma. A bird flying high.

Se te pretendes iniciar no universo João, desvenda-o em concerto. Se te for impossível, aqui ficam duas sugestões. Dois CDs que marcaram a minha adolescência. Cor (17/20) e Mumadji (16/20).

alice

João tem muitas facetas musicais, que vão desde os mais distantes trabalhos com Aki Takase, a novos olhares sobre temas consagrados, em Undercovers (16/20), à brilhante interpretação de temas do cancioneiro brasileiro, em João (17/20), e ao mais recente re-visão sobre standards do Jazz e não só, sempre com a assinatura João e Laginha, em Chocolate (16/20).

(19/20)

Sacanas Sem Lei

Quentin Tarantino oferece-nos um filme de experiências e riscos. Cada cena é um pretexto para explorar a arte e liberdade cinematográficas.
A encenação e o guião suspiram genialidade. As interpretações fazem jus à fasquia.
Há um misto de loucura, branda tragédia e imprevisibilidade que percorre o filme e que nos cola ao ecrã.
Obrigatório para todos os cinéfilos!

(17/20)

O olhar de Mia Couto

Não me recordo de um outro autor do qual tenha lido tantas obras como Mia Couto.
O meu fascínio por África também não é recente, sempre me acompanhou. Creio que é, sobretudo, esta sede e identificação com a escrita de Mia que me faz sempre voltar às suas criações. O misticismo que Mia cultiva nas suas obras, ora desafiando as crenças populares ora desejando essa outra dimensão, não me é estranho ou alheio.

A escrita de Mia tem peso. Molda-se ao nosso pensamento. Dá sentido. Escrever é dar sentido. É sentir. Os factos não chegam. A escrita de Mia tem o mesmo ritmo que o enredo e acompanha a nossa leitura. Não recordo iniciar um livro de Mia Couto sem ficar perdido no tempo, profundamente embrenhado nas suas palavras. Esta mestria é só possível por, antes de mais, Mia Couto ser um bestial pensador. As ideias fumegam. Contudo, Mia pinta os pensamentos com cores próprias e símbolos e devolve-os com grande simplicidade ao leitor.

Enfim, com Mia Couto já vamos sabendo que, consciencializados das nossas raízes e da arte própria, o importante é que não existam barreiras.

Para quem pretende iniciar uma viagem pelo mundo de Mia Couto aqui ficam algumas sugestões:


Ponyo, arte sem barreiras

As expectativas estão altíssimas. Sou um grande admirador Hayao Miyazaki, criador de Ponyo e um dos maiores ícones da animação japonesa. Mononoke-hime marca o meu imaginário no final da minha infância. Mais recentes, Sen to Chihiro no kamikakushi (Spirited Away) e Hauru no ugoku shiro (Howl’s Moving Castle) são igualmente duas propostas brilhantes de fuga para um espaço onde o sonho, o afecto e a imaginação não têm fronteiras.
O olhar de Miyazaki parece ter um entendimento muito próprio e profundo da realidade, o que devolve às suas criações uma calma harmonia.

Miyazaki consegue, mais uma vez, surpreender-me. Em Ponyo há um regresso à linha simples de desenho. E é assim que compreendemos que a genialidade não está na minuciosa qualidade do desenho, mas sim no movimento, perspectiva e luz, assim como na expressão e atitude das personagens. Em Ponyo somos levados a reviver o mundo, porventura, inocente, seguro e colorido da nossa infância, e também a trazê-lo para as nossas vidas. A simplicidade e o claro entendimento do argumento e do comportamento das personagens devolve-nos esse mesmo desafio.
Um filme para fantasistas de todas as idades.

(17/20)

LOST: façam as vossas apostas

Enigmático, controverso e épico.
LOST é uma viagem bíblica centrada n’A Ilha.
A última temporada desta brilhante e intrigante série chega-nos no início de 2010. Até lá resta a cada um dos seus fiéis seguidores, como eu, expectar!

“Backgammon is the oldest game in the world, archeologists found sets when they excavated the ruins at ancient Mesopotamia, five thousand years old… that’s older than Jesus Christ. […] Their dice weren’t made of plastic, theirs were made of bone. …Two players, two sides. One is light… and one is dark.” Locke
Jacob e o Fumo? Deuses da luz e da escuridão? Segundo esta teoria, inspirada na mitologia egípcia, Jacob representaria a encarnação desse deus de luz, intervindo n’A Ilha com a sua visão de progresso. Por sua vez, o Fumo é, ele próprio, o deus da escuridão, com o poder de julgar as acções em vida dos habitantes do seu espaço, intervindo com a sua visão de caos. Pressupondo que o Fumo assume uma existência não corpórea (novamente referências bíblicas e mitológicas), este necessita de possuir corpos mortos para atingir os seus fins. Isto explica o aparecimento em condições estranhas de Claire, Christian ou Boone.

Não podendo este matar directamente o seu deus paralelo, isto explica a possessão do corpo de Locke (Who lies on the shadow of the statue [death]? The one who will save us…) para persuadir Ben a matar Jacob, explicando também a chance dada a Ben no cárcere subterrâneo. Mas existirá um Locke vivo num tempo actual ou paralelo?

Sabemos ainda que uma guerra está para vir. Terá que ver com Linus e Widmore? Será mais uma brincadeira de poder destes deuses guardiões? Parece-me que nenhuma destas hipóteses é a solução. Sabendo que os Hostiles veneram Jacob, haverá algum seguidor do Fumo?

Estes são apenas os desenhos de fundo de uma série de culto. Teremos que esperar mais uns mesinhos para desvendar um conjunto de mistérios, como o da idade de Richard Alpert ou do papel de Walt no enredo, ou as razões que estão por detrás do temperamento de Juliet ou do alheamento de Jin. Contudo, o foco agora é outro. Qual o destino reservado às nossas personagens e à Ilha?
Confirmar-se-á a teoria de Jack (Oceanic Flight 815 aterra em segurança em Los Angels)? Improvável.
Confirmar-se-á a teoria de Faraday (impossível alterar o destino das coisas)? Sim. Isto explica que a luz que vemos no final da série não provém da explosão, mas é, porventura, a força electromagnética responsável pela transgressão no tempo. Concordam? A que tempo irão parar os nossos amigos?
Comentem com a vossa opinião e teorias!
Abraços

Bússola Política

Há um descontentamento geral quando se evoca a palavra política.
Em Portugal os ideais e convicções que determinam as cores partidária parecem ser desconhecidos, esquecidos e até ignorados por grande parte da nossa sociedade. É do nosso dever de intervenção, enquanto cidadãos, de que vos quero falar. Já todos sabemos que o interesse pessoal ou partidário que desvia fundos, desvirtua medidas, corrompe valores ou apela à demagogia e à falta de transparência é, infelizmente, um problema estrutural da grande maioria dos políticos em Portugal. Mas esta incompatibilidade que parece existir entre o interesse e o dever político já é bem conhecido de todos nós. Quero, pelo contrário, tentar perceber convosco qual é a nossa responsabilidade política no estado actual do país.

Cada programa eleitoral, fundado em ideais políticos, deveria merecer por cada um de nós uma análise crítica que resultasse numa lista de pontos positivos e divergências. No entanto, curiosamente, cada cidadão português parece querer reunir todos os pontos positivos num só partido ou, alternativamente, não reconhecer nada de positivo em nenhum lado. Destacar as medidas positivas apresentadas por um outro partido ou a crítica justificada, transparente e que apresenta alternativas são o caminho, sejamos políticos ou cidadãos. No entanto, há uma relutância em reconhecer o que o outro faz bem ou onde eu posso estar a errar. Parece existir uma imposição genética, educativa ou, porventura, social que nos impede de agir como tal, moldando os nossos argumentos e a nossa consciência. Por vezes, menos gravemente, este apoio cego resulta de um foco numa política que está directamente ligada à nossa vida. Outras vezes, da incapacidade de separar a aparência e o sofisma do conteúdo.

O exercício de tentar compreender a fundo, de forma isenta de convenções, as diferentes alternativas existentes é um dever de cada um de nós num país democrático. No final do exercício, a falta de alternativa poderá conduzir à desilusão. No entanto, parece-me que, a existir alternativa, a alternativa menos má é preferível ao voto em branco. Este problema, o problema da alternativa, é para as mentes livres o maior problema em Portugal. E resulta não só do problema estrutural da incompetência e dos interesses políticos, que prometi tentar não evocar, mas também da não-separação das políticas sociais e económicas nos partidos portugueses. Os partidos economicamente mais liberais acabam por ser socialmente autoritários. E os partidos menos conservadores em políticas sociais acabam por defender um Estado pesado, que corre o risco de limitar a iniciativa privada e de se tornar controlador, inflexível e despesista. Qual deverá ser a verdadeira função do Estado?

Para que cada cidadão possa exercer o seu dever de voto de forma consciente é importante que reflicta profundamente sobre esta questão, metendo de lado os seus genes e todas as certezas mal fundamentadas. Só depois deverá avançar em direcção aos programas eleitorais, devido à sua crescente volatilidade.
Sem me estender demasiado, deixo-vos com um pequeno desafio: a bússola política. De forma, mais ou menos objectiva, ela traçará o vosso perfil político. Lembrem-se que o centro da bússola não corresponde ao centro da política em Portugal e que os resultados não são absolutos, isto é, podem se moldar ao longo da tua vida. Desafio aceite? O teste é bastante interessante, podem cortar perguntas e colar nos vossos comentários para alargar o debate!

>> Aceito o desafio do Rui! <<

Todos nós temos um dever cívico para com a nossa sociedade. De forma mais ou menos radical, ora levantando questões, ora apoiando causas, devemos intervir activamente na vida política do nosso país e do mundo. Creio que, neste momento, o melhor contributo é suscitar o debate interior e com os outros para que dia 27 possamos votar em consciência.
Abraços

A arte de Camané

Profundo, emotivo e verdadeiro.
Camané canta uma alma cavada de sentimentos.
Só uma mente aberta e genial como a de Camané consegue reunir tamanha arte em Sempre de Mim, onde um olhar contemporâneo, que não corrompe a linha tradicional, ali é traçado sobre poemas fortes e uma autenticidade única. Ao Vivo no Coliseu, baseado em Sempre de Mim, revela-nos um artista completo que transborda de sensações.

O que ele ainda não sabe é que canta com Alma!” Amália Rodrigues
Numa viela ou junto ao Tejo, a arte de Camané é, sobretudo, para sentir.

(17/20)

Deolinda recriam imaginário dos penichenses

Os Deolinda iluminaram, no passado dia 22 de Agosto, a praça-forte de Peniche com um serão onde letras e voz devolveram um novo olhar sobre o quotidiano português.
São 22h30. O palco, ainda que cru, convida ao já bem nosso conhecido universo Deolinda. Acendem-se as luzes. O palco é pisado com a simplicidade de quem é humilde (ou de quem repete o número inúmeras vezes). O sorriso de Ana Bacalhau conquista o público. E é assim que somos convidados a viajar por uma realidade que nos é próxima, mas que ganha uma nova dimensão e sentido nas letras e composições de Pedro da Silva Martins e na voz de Ana Bacalhau. Os Deolinda conseguem exaltar o vulgar como movimento e arte. Ouvi-los é um convite à fuga interior.

Ana Bacalhau, relembrando o facto que levou ao cancelamento do último concerto na cidade, iniciou o concerto fincando que nenhum temporal capaz de fustigar Peniche naquela noite impediria os Deolinda de se entregarem na sua actuação. E assim foi. Com a garra que já conhecemos em Ana Bacalhau, fizeram-se ouvir os hinos ao portuguesismo com a exaltação do conformismo (em Mal por Mal), do comodismo e desresponsabilização (em Movimento Perpétuo Associativo), da vaidade e idolatria (em Contado Ninguém Acredita), do grosseiro (em Fado Toninho) e do romantismo absurdo (em Fon Fon Fon).
Ainda em ritmo acelerado, nota positiva para a interpretação fervorosa de Quando Janto em Restaurantes, onde o vigor de quem assiste transborda no mote, e para o universo provinciano e sugestivo encerrado na letra de Ai Rapaz.

Os momentos altos da noite aconteceram em três momentos. Primeiro, Lisboa Não é a Cidade Perfeita, onde a genialidade de Silva Martins foi particularmente notória ao evocar a saudade e a loucura consentida (“Ainda bem que eu nunca fui capaz de encontrar a viela a seguir”), os sentimentos mais nossos. Segundo, Não Sei Falar de Amor, onde as notas e vibrações da voz de Ana Bacalhau se confundiam com o baixo inspirado de Zé Pedro Leitão tornando este momento num mote épico progressivamente afundando-nos em timidez (“Quanto mais o amor medra mais se afoga o desvario. E retrai-se o atrevimento a pequenas bolhas de ar… E o querer deste meu corpo vai sempre parar ao mar…”). Último destaque para Entre Alvalade e as Portas de Benfica pelos vocais e composição, que tornaram possível tornar um caso de amor improvável numa letra sobre melancolia e esperança.

O concerto ainda teve espaço para um duo com a guitarra clássica de Luís Martins em Eu Tenho um Melro, para uma casa de fados com sabor a samba, para uma entrega única e arrepiante na interpretação de Clandestino e o Fado Não é Mau e, ainda, para a inclusão do fado É ou Não É de Amália (cujo privilégio de inclusão parece ser entendido mais como popular do que fado e que, por isso, não tem a minha preferência). Fora do alinhamento ficaram alguns inéditos não editados e particularmente interessantes como Fado Notário ou a Marcha da Vida.

Apesar de todos ingredientes, a aparente apatia do público (ecos de um jogo de futebol? harmónico!) e a falta de improviso nas melodias e nas introduções a temas impediram elevar este concerto à epopeia. Que bom seria ver os Deolinda recriando-se perante uma plateia e um local. Tornando mais própria e verdadeira a sua arte e premiando os seus ouvintes. Na passada noite, um conjunto de letras e composições inspiradas e uma voz de mil texturas foram um pretexto mais que suficiente para me evadir por duas horas e regressar com um sorriso complacente… afinal sou português!

(16/20)

Mãos na Parede

Reflectir | Verticalmente confrontados com o nosso corpo e pensamento.
Interpretar > Questionar. Destruir. Compreender. Desenhar.

Agir | Posicionados para marcar e quebrar barreiras sociais, físicas e espirituais.
Aprender > Tornar concreto. Aplicar. Vestir. Adaptar. Progredir.

maoparede

A partir de Setembro este será um espaço para a recriação.
Sintam-se em casa, amigos,
e dispam-se antes de entrarem,

Rui