Deolinda recriam imaginário dos penichenses

Os Deolinda iluminaram, no passado dia 22 de Agosto, a praça-forte de Peniche com um serão onde letras e voz devolveram um novo olhar sobre o quotidiano português.
São 22h30. O palco, ainda que cru, convida ao já bem nosso conhecido universo Deolinda. Acendem-se as luzes. O palco é pisado com a simplicidade de quem é humilde (ou de quem repete o número inúmeras vezes). O sorriso de Ana Bacalhau conquista o público. E é assim que somos convidados a viajar por uma realidade que nos é próxima, mas que ganha uma nova dimensão e sentido nas letras e composições de Pedro da Silva Martins e na voz de Ana Bacalhau. Os Deolinda conseguem exaltar o vulgar como movimento e arte. Ouvi-los é um convite à fuga interior.

Ana Bacalhau, relembrando o facto que levou ao cancelamento do último concerto na cidade, iniciou o concerto fincando que nenhum temporal capaz de fustigar Peniche naquela noite impediria os Deolinda de se entregarem na sua actuação. E assim foi. Com a garra que já conhecemos em Ana Bacalhau, fizeram-se ouvir os hinos ao portuguesismo com a exaltação do conformismo (em Mal por Mal), do comodismo e desresponsabilização (em Movimento Perpétuo Associativo), da vaidade e idolatria (em Contado Ninguém Acredita), do grosseiro (em Fado Toninho) e do romantismo absurdo (em Fon Fon Fon).
Ainda em ritmo acelerado, nota positiva para a interpretação fervorosa de Quando Janto em Restaurantes, onde o vigor de quem assiste transborda no mote, e para o universo provinciano e sugestivo encerrado na letra de Ai Rapaz.

Os momentos altos da noite aconteceram em três momentos. Primeiro, Lisboa Não é a Cidade Perfeita, onde a genialidade de Silva Martins foi particularmente notória ao evocar a saudade e a loucura consentida (“Ainda bem que eu nunca fui capaz de encontrar a viela a seguir”), os sentimentos mais nossos. Segundo, Não Sei Falar de Amor, onde as notas e vibrações da voz de Ana Bacalhau se confundiam com o baixo inspirado de Zé Pedro Leitão tornando este momento num mote épico progressivamente afundando-nos em timidez (“Quanto mais o amor medra mais se afoga o desvario. E retrai-se o atrevimento a pequenas bolhas de ar… E o querer deste meu corpo vai sempre parar ao mar…”). Último destaque para Entre Alvalade e as Portas de Benfica pelos vocais e composição, que tornaram possível tornar um caso de amor improvável numa letra sobre melancolia e esperança.

O concerto ainda teve espaço para um duo com a guitarra clássica de Luís Martins em Eu Tenho um Melro, para uma casa de fados com sabor a samba, para uma entrega única e arrepiante na interpretação de Clandestino e o Fado Não é Mau e, ainda, para a inclusão do fado É ou Não É de Amália (cujo privilégio de inclusão parece ser entendido mais como popular do que fado e que, por isso, não tem a minha preferência). Fora do alinhamento ficaram alguns inéditos não editados e particularmente interessantes como Fado Notário ou a Marcha da Vida.

Apesar de todos ingredientes, a aparente apatia do público (ecos de um jogo de futebol? harmónico!) e a falta de improviso nas melodias e nas introduções a temas impediram elevar este concerto à epopeia. Que bom seria ver os Deolinda recriando-se perante uma plateia e um local. Tornando mais própria e verdadeira a sua arte e premiando os seus ouvintes. Na passada noite, um conjunto de letras e composições inspiradas e uma voz de mil texturas foram um pretexto mais que suficiente para me evadir por duas horas e regressar com um sorriso complacente… afinal sou português!

(16/20)

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