Archive for the ‘music’ Category.

Lisboa rende-se perante Mariza

O coliseu de Lisboa estremeceu e aplaudiu de pé Mariza durante todo o memorável concerto de dia 31 de Outubro!
Mariza esteve no seu melhor – confidente, segura e vocalmente estonteante!
Como já todos o sabem, tenho tamanha admiração por Mariza que se torna impossível caligrafar tal paixão, respeito e gratidão. Já se torna difícil contabilizar, mas nunca recordar, todos os concertos que já vi de Mariza. Esta descoberta remonta a 2001 e, desde esse momento, que uma grande identificação com a sua arte e forma de sentir me vêm acompanhando.

Na passada noite, Mariza trouxe-nos, do album Terra, noves temas. Interpretou brilhantemente Já Me Deixou, Morada Aberta, Tasco da Mouraria, Alfama, Rosa Branca, Minh’Alma, Beijo de Saudade e, com um sabor muito muito especial, apresentou-nos de forma segura e vertical o forte poema Recurso e íntima e saudosamente Vozes do Mar. O concerto ainda contou com o caloroso Chuva, o bairrista e livre Maria Lisboa, o sentido Primavera, os sorridentes Feira de Castro e Oiça lá ó Senhor Vinho, o clássico Meu Fado Meu, o apoteótico e laudatório Barco Negro e o único e arrepiante Ó Gente da Minha Terra.

Nota, também, extraordinária para a prestação dos músicos em palco. Marino de Freitas, no baixo acústico, Vicky Marques na bateria e percussão, Simon James, no piano e trompete, e, genialmente, Ângelo Freire na guitarra portuguesa e Diogo Clemente na viola de fado.

Mariza mostrou-se cúmplice para com o seu público e, entre sucessivas partilhas, reduziu o coliseu a uma taberna para interpretar acapella Zanguei-me Com Meu Amor.
A cantora perante aplausos e manifestos de reverência fez um encore de quatro temas, porque a hora já mais pouco permitia, devolvendo a honra e respeito ao seu público numa vénia demorada (interiorizada na sua recente passagem pelo Japão) e lançou-se com toda a força na notável e final interpretação de Cavaleiro Mongeiro.

(19/20)

Simplesmente João

Maria João simboliza a liberdade e a criatividade musical e é a viva prova de que não devem existir barreiras na expressão artística de cada Eu
Simplesmente João.

Dia 1 de Outubro assisti ao meu décimo concerto da dupla João e Mário Laginha nos jardins do Palácio de Belém (19/20). Apesar da elevada expectativa, fui mais uma vez arrebatado pelos vocais surpreendentes de João. Indiscritível a quantidade de sensações que se colam a nós quando ouvimos as histórias desenhadas pelas mil e uma sonoridades de João. Toda a música assim deveria de ser. Verdadeira.
João é assim. Única. A sua voz carrega mil texturas e projecta-nos para sítios tão distintos como África, universos de fábulas ou para o imaginário black jazzistico.
Mário Laginha que já vai dispensando apresentações, esteve também e mais uma vez muito inspirado. É, na minha opinião, o melhor pianista português e, curiosamente, o único que consegue trazer o Oriente através das teclas.

O concerto começa com o tema Parrots and Lions, captando a atenção e conquistando o coração de todos os ouvintes. Segue-se a brilhante interpretação dos clássicos Goodbye Pork Pie Hat e I’ve Grown Accustomed to His Face, e dos originais Em Tão Pouco Escureceu Tanto e I Have a Heart Just Like Yours. Cada tema parece, nesta noite, ganhar um novo sentido e uma nova roupagem.
As grandes surpresas da noite aconteceram em quatro momentos. O primeiro ocorreu durante a interpretação de Há Gente Aqui, onde entre conversas e improvisos João lança-se emotiva e profundamente no fado. Segundo momento – a sempre memorável interpretação de Beatriz. O terceiro momento ocorreu durante o original Preto e Branco, música onde a brincadeira ritmo-melódica cede a um espaço mágico. De verdadeira recriação. De total improviso. O público levanta-se, arrebatado, e as palmas não cessam. Este momento dá direito ao regresso de João e Laginha ao palco para nos brindarem com uma fábula, despedindo-se em tom de sonho. When You Wish Upon a Star (your dreams come true).
No entanto, o momento mais alto da noite aconteceu em Cair do Céu. O conto de João intensificado pelo improvisado batuque de Laginha começou calmo e promissor. Aconteceu. João solta-se num improviso único. Explora sons. A arte nasce em todo o lado e a todo o momento. Não sei o que terá passado pela cabeça dos ouvintes. Ora um canto embruxado, ora um choro de uma criança, ora um balão a estilhaçar-se. A arte deve ser assim. Livre!

A noite terminou com um concerto dado por alunos da escola Hot Club, e com um bom e imprevisto encontro com a voz soulful da minha amiga Selma. A bird flying high.

Se te pretendes iniciar no universo João, desvenda-o em concerto. Se te for impossível, aqui ficam duas sugestões. Dois CDs que marcaram a minha adolescência. Cor (17/20) e Mumadji (16/20).

alice

João tem muitas facetas musicais, que vão desde os mais distantes trabalhos com Aki Takase, a novos olhares sobre temas consagrados, em Undercovers (16/20), à brilhante interpretação de temas do cancioneiro brasileiro, em João (17/20), e ao mais recente re-visão sobre standards do Jazz e não só, sempre com a assinatura João e Laginha, em Chocolate (16/20).

(19/20)

A arte de Camané

Profundo, emotivo e verdadeiro.
Camané canta uma alma cavada de sentimentos.
Só uma mente aberta e genial como a de Camané consegue reunir tamanha arte em Sempre de Mim, onde um olhar contemporâneo, que não corrompe a linha tradicional, ali é traçado sobre poemas fortes e uma autenticidade única. Ao Vivo no Coliseu, baseado em Sempre de Mim, revela-nos um artista completo que transborda de sensações.

O que ele ainda não sabe é que canta com Alma!” Amália Rodrigues
Numa viela ou junto ao Tejo, a arte de Camané é, sobretudo, para sentir.

(17/20)

Deolinda recriam imaginário dos penichenses

Os Deolinda iluminaram, no passado dia 22 de Agosto, a praça-forte de Peniche com um serão onde letras e voz devolveram um novo olhar sobre o quotidiano português.
São 22h30. O palco, ainda que cru, convida ao já bem nosso conhecido universo Deolinda. Acendem-se as luzes. O palco é pisado com a simplicidade de quem é humilde (ou de quem repete o número inúmeras vezes). O sorriso de Ana Bacalhau conquista o público. E é assim que somos convidados a viajar por uma realidade que nos é próxima, mas que ganha uma nova dimensão e sentido nas letras e composições de Pedro da Silva Martins e na voz de Ana Bacalhau. Os Deolinda conseguem exaltar o vulgar como movimento e arte. Ouvi-los é um convite à fuga interior.

Ana Bacalhau, relembrando o facto que levou ao cancelamento do último concerto na cidade, iniciou o concerto fincando que nenhum temporal capaz de fustigar Peniche naquela noite impediria os Deolinda de se entregarem na sua actuação. E assim foi. Com a garra que já conhecemos em Ana Bacalhau, fizeram-se ouvir os hinos ao portuguesismo com a exaltação do conformismo (em Mal por Mal), do comodismo e desresponsabilização (em Movimento Perpétuo Associativo), da vaidade e idolatria (em Contado Ninguém Acredita), do grosseiro (em Fado Toninho) e do romantismo absurdo (em Fon Fon Fon).
Ainda em ritmo acelerado, nota positiva para a interpretação fervorosa de Quando Janto em Restaurantes, onde o vigor de quem assiste transborda no mote, e para o universo provinciano e sugestivo encerrado na letra de Ai Rapaz.

Os momentos altos da noite aconteceram em três momentos. Primeiro, Lisboa Não é a Cidade Perfeita, onde a genialidade de Silva Martins foi particularmente notória ao evocar a saudade e a loucura consentida (“Ainda bem que eu nunca fui capaz de encontrar a viela a seguir”), os sentimentos mais nossos. Segundo, Não Sei Falar de Amor, onde as notas e vibrações da voz de Ana Bacalhau se confundiam com o baixo inspirado de Zé Pedro Leitão tornando este momento num mote épico progressivamente afundando-nos em timidez (“Quanto mais o amor medra mais se afoga o desvario. E retrai-se o atrevimento a pequenas bolhas de ar… E o querer deste meu corpo vai sempre parar ao mar…”). Último destaque para Entre Alvalade e as Portas de Benfica pelos vocais e composição, que tornaram possível tornar um caso de amor improvável numa letra sobre melancolia e esperança.

O concerto ainda teve espaço para um duo com a guitarra clássica de Luís Martins em Eu Tenho um Melro, para uma casa de fados com sabor a samba, para uma entrega única e arrepiante na interpretação de Clandestino e o Fado Não é Mau e, ainda, para a inclusão do fado É ou Não É de Amália (cujo privilégio de inclusão parece ser entendido mais como popular do que fado e que, por isso, não tem a minha preferência). Fora do alinhamento ficaram alguns inéditos não editados e particularmente interessantes como Fado Notário ou a Marcha da Vida.

Apesar de todos ingredientes, a aparente apatia do público (ecos de um jogo de futebol? harmónico!) e a falta de improviso nas melodias e nas introduções a temas impediram elevar este concerto à epopeia. Que bom seria ver os Deolinda recriando-se perante uma plateia e um local. Tornando mais própria e verdadeira a sua arte e premiando os seus ouvintes. Na passada noite, um conjunto de letras e composições inspiradas e uma voz de mil texturas foram um pretexto mais que suficiente para me evadir por duas horas e regressar com um sorriso complacente… afinal sou português!

(16/20)