Um dos objectivos das
ciências físicas tem sido o de
retratar fielmente o mundo material e um dos êxitos da
física no século XX foi provar que esse objectivo
é inatingível.
Tomemos um exemplo muito concreto: a face humana. Esta é a cara
de Stephen Borgrajewicz. Tal como eu nascido na Polónia. Ei-lo
retratado pelo artista polaco Feliks Topolski. Sabemos que este tipo de
pinturas, mais do que fixar uma face, exploram-na. O artista
traça os pormenores quase como se tacteasse, e cada linha que
acrescenta, reforça o retrato, mas nunca o torna definitivo.
Aceitamos isto como o método do artista. Porém, a
física actual mostrou-nos que este é também o
único método de conhecimento. Não existe
conhecimento absoluto e aqueles que o reivindicam, quer sejam
cientistas ou dogmáticos abrem as portas à
tragédia.
Toda a informação é imperfeita e temos que a
tratar com humildade. Esta é a condição humana e
também a mensagem da Física Quântica. Rigorosamente.
Pergunto: até onde pode ir a exactidão e o pormenor da
nossa observação com os melhores instrumentos do mundo ou
mesmo com o instrumento perfeito, se algum dia o conseguíssemos
fabricar? A observação do pormenor pode não se
limitar àquilo que vemos com a luz visível, já que
do vermelho ao violeta, vai apenas, aproximadamente, uma oitava na
escala das radiações invisíveis. Existe todo um
quadro de informação entre os maiores comprimentos de
onda, as ondas rádio (as notas mais baixas) e os menores
comprimentos de onda, os raios X, e para lá delas as notas mais
agudas. Uma a uma, vamos apresentá-las servindo-nos da face
humana.
As ondas invisíveis de maior comprimento são as ondas de
rádio, cuja existência foi comprovada por Heinrich Hertz,
há aproximadamente 100 anos. Por serem as mais longas,
são também as mais grosseiras. Um radar trabalhando num
comprimento de onda de poucos metros não detectará a
face, a não ser que esta também tenha alguns metros de
largura. Só à medida que diminuímos o comprimento
de onda começam a aparecer alguns pormenores da cabeça
gigantesca. A uma fracção de metros, as orelhas e no
limite das ondas rádio, a alguns centímetros, os
primeiros sinais do homem ao lado da estátua.
Vamos, agora, observar a cara do homem através de uma
câmara sensível às radiações com
menos de 1 milímetro: no infra-vermelho.
Foram descobertas pelo astrónomo William Herschell, em 1800, ao
notar o aquecimento produzido quando focalizava o seu telescópio
para lá da luz vermelha. Os raios infra-vermelhos são
raios térmicos. A chapa da câmara transforma-os em luz,
fazendo com que os mais quentes apareçam a azul e os mais frios
a vermelho ou escuro. Podemos observar os principais traços
fisionómicos da face: os olhos, a boca, o nariz e reparem na
corrente quente que sai das narinas. Sim, mostra-nos algo sobre a face
humana, mas nada de pormenorizado. E os seus menores comprimentos de
onda, centésimos de milímetro, as tonalidades do
infra-vermelho transformam-se gradualmente em vermelho visível.
O filme é sensível a ambos e a face ganha vida. Já
não é, apenas, um homem. É o homem que nós
conhecemos. A luz branca revela-o à vista, claramente e em
pormenor: os pequenos pêlos, os poros da pele, uma cicatriz aqui,
um vaso sanguíneo rebentado ali. A luz branca é uma
mistura de comprimentos de onda: do vermelho ao laranja, ao amarelo, ao
verde, ao azul e ao violeta, o menor dos comprimentos de onda
visíveis.
Deveríamos ser capazes de observar mais pormenores com as ondas
violeta, curtas, do que as ondas vermelhas, longas, mas na
prática, a diferença é de cerca de uma oitava,
não nos serve de muito.
O pintor analisa a face e dá os traços
fisionómicos, separa as cores, amplia a imagem.
É natural que perguntemos: não deveria o cientista usar o
microscópio? Sim, deveria. Mas temos de compreender que o
microscópio amplia a imagem mas não a consegue
aperfeiçoar. A nitidez do pormenor é determinada pelo
comprimento de onda da luz. Com uma ampliação superior a
200 vezes, podemos isolar uma célula individual da pele. Mas
para obter, ainda mais pormenores continuamos a precisar de um
comprimento de onda ainda mais curto.
Sendo assim, o passo seguinte é a luz ultra-violeta com um
comprimento de onda de um décimo de milésimo de
milímetro ou menos, ou seja, 10 vezes mais curta que a luz
visível. Se os nossos olhos pudessem ver em ultra-violeta,
mostrar-nos-iam esta paisagem fluorescente e fantasmagórica. O
que se passa é que em qualquer comprimento de onda as
radiações só podem ser interceptadas por objectos
de dimensões, pelo menos tão grande como o próprio
comprimento de onda. Um objecto mais pequeno permanecerá
invisível. O microscópio de ultra-violetas com uma
ampliação de 3500 vezes, leva-nos ao interior da
célula, até ao nível dos cromossomas. Mas este
é o limite, nenhuma luz poderá tornar visíveis os
genes no interior do cromossoma.
Passemos aos Raios X. Estes raios não podem ser focados e por
isso não se pode construir um microscópio de raios X.
Temos de nos contentar em dispará-los contra o objecto e obter
uma espécie de sombra. Agora, o pormenor depende da sua
penetração. A estrutura óssea sob a pele torna-se
visível e vemos por exemplo que este homem perdeu os dentes.
Esta forma de sondar o corpo motivou o entusiasmo pelos raios X, logo
após a sua descoberta por Rontgen. Foi ele, o herói, que
ganhou o 1º Nobel em 1901.
Alguns acasos felizes na natureza permitem-nos, por vezes, ir mais
longe. Podemos traçar o mapa dos átomos de um cristal,
já que o seu espaçamento é regular. Esta é
a disposição dos átomos de uma espiral de ADN. Um
gene é assim. Este método foi inventado em 1912 por Max
von Laue e constituiu a 1ª prova que os átomos são
reais.
Resta-nos mais um passo: o microscópio de electrões, no
qual os raios são tão concentrados que não sabemos
se lhes devemos chamar ondas ou partículas. Os electrões
são disparados contra um objecto e desenham o seu contorno,
à semelhança de um atirador de facas numa feira. Eis o
menor objecto até hoje observado: um átomo isolado de
tório. É espectacular. Contudo, nem mesmo os
electrões mais enérgicos proporcionam contornos
nítidos. A imagem perfeita está ainda tão remota
como as estrelas distantes.
Eis-nos que enfrentamos o paradoxo crucial do conhecimento: ano
após ano, inventámos instrumentos de maior
precisão com os quais observamos a natureza com mais pormenor,
mas ao analisarmos as observações, estas permanecem
imperfeitas. É como se corrêssemos atrás de algo
que se afasta mais de nós, para o infinito, de cada vez que nos
aproximamos.
Vejamo-lo no contexto de um observatório astronómico. Eis
o observatório construído para Karl Friedrich Gauss, em
Gottingham. Ao longo da sua existência os instrumentos
astronómicos aperfeiçoaram-se. Ao observarmos a
posição de uma estrela, temos a impressão de
estar, cada vez mais perto de a determinar com precisão. Mas
comparando as observações individuais ficamos
surpreendidos e envergonhados ao verificar que elas divergem entre si,
como sempre. Esperávamos que os erros humanos desaparecessem e
que conseguíssemos nós próprios ter a visão
de Deus. Mas, afinal revela-se impossível erradicar o erro das
observações e isto verifica-se com as estrelas, com os
átomos, ou mesmo ao observarmos o retrato de alguém ou ao
ouvirmos um relato dum discurso qualquer.
Gauss compreendeu-o, com aquele seu génio maravilhoso e juvenil
que manteve quase até à morte, com 80 anos. Com apenas 18
anos, ao chegar aqui a Gottingham para entrar na universidade, tinha
já resolvido o problema de como obter a melhor estimativa de uma
série de observações com erros acidentais. Quando
se observa uma estrela sabe-se que existem inúmeros factores de
erro. Daí, que sejam efectuadas várias leituras, na
esperança de que a melhor estimativa da posição da
estrela seja a leitura média ou seja o centro da
dispersão. Até aqui é óbvio. Mas Gauss foi
mais além. E procurou saber o que nos indica a dispersão
dos erros e idealizou a curva Gaussiana, na qual a dispersão
é traduzida pelo desvio ou alargamento da curva. Após, o
que foi ainda mais longe.
A dispersão define uma área de incerteza. Não
podemos concluir que a posição real seja o centro. Apenas
podemos afirmar que fica na área de incerteza. Gauss detestava
filósofos que afirmavam possuir uma via para o conhecimento mais
perfeita do que a observação. Um exemplo, entre muitos,
era Friedrich Hegel. Um filósofo, que devo confessar, detesto
particularmente, e sentia-me, aliás, orgulhoso por este meu
sentimento ser partilhado por alguém de maior estatura como
Gauss.
Em 1800, Hegel publicou uma tese, se assim se pode chamar, provando que
apesar da definição dos planetas ter evoluído
desde a antiguidade, filosoficamente deveriam, apenas existir sete
planetas. Bem, Gauss não foi o único a saber como
responder a isso. Shakespeare já o tinha feito muito antes, num
passo extraordinário do rei Elias: «O bobo, claro, diz ao
rei: a razão pela qual as sete estrelas são apenas sete
é interessante». O rei abanou solenemente a cabeça
e respondeu: «é porque não são oito».
E o bobo retorquiu: «Sim, de facto, vós também
faríeis um belo bobo, tal como Hegel.». No dia 1 de
Janeiro de 1801, antes de secar a tinta da dissertação de
Hegel era descoberto Ceres, o oitavo planeta. A história
é pródiga em ironias. Como efeito retardado da curva de
Gauss, após a sua morte, descobrimos que não existe uma
visão de Deus e que os erros fazem parte da natureza do
conhecimento humano. É uma ironia que essa descoberta venha a
ser feita, aqui, em Gottingham.
As velhas cidades universitárias são todas
maravilhosamente parecidas: Gottingham é semelhante a Cambridge,
na Inglaterra ou Yale nos Estados Unidos, provinciana e retirada. Quem
para aqui vem apenas procura a companhia dos professores, os quais
acreditam ser este o centro do mundo. Uma inscrição no
Rathskeller reza o seguinte: «Fora de Gottingham não
existe vida». O símbolo da universidade é uma
guardadora de gansos, descalça, cuja estátua todos os
estudantes beijam quando obtêm o diploma. A universidade é
a Meca à qual os estudantes se dirigem com uma fé
não absoluta. É importante que os estudantes transportem
para os seus estudos uma certa dose de irreverência
descontraída. Não estão aqui para adorar os
conhecimentos, mas para os questionar. Como noutras universidades,
após o almoço, os parques de Gottingham são
percorridos em longos passeios pelos professores e os estudantes ficam
embevecidos quando são convidados para os acompanhar.
Talvez, no passado, Gottingham tenha estado meia adormecida. As
pequenas cidades universitárias alemãs são
anteriores à unificação do país, daí
que estejam eivadas de burocracia local. Mesmo após 1918,
mantinham-se mais conformistas que as suas congéneres
estrangeiras. O elo de ligação entre Gottingham e o mundo
exterior era o comboio. Nele chegavam de Berlim e do estrangeiro,
visitantes desejosos de permutar as ideias novas, nas fronteiras
móveis da física. Em Gottingham era comum afirmar-se que
a ciência tinha nascido no comboio para Berlim, já que era
aí que as pessoas discutiam, tinham novas ideias e as
contestavam.
Durante a 1ª Guerra Mundial a ciência foi dominada, em
Gottingham, como em todo o lado, pela relatividade. Mas em 1921, foi
nomeado professor Max Born, que iniciou uma série de
seminários que atraíram aqui toda a gente interessada
pela física atómica. Curiosamente, Max Born quando foi
nomeado tinha quase 40 anos. A maioria dos físicos realizaram os
seus melhores trabalhos antes dos 30 anos, os matemáticos muito
antes e os biólogos, talvez, um pouco mais tarde. Mas Born
possuía um extraordinário dom socrático:
atraía os jovens. Extraía deles o melhor e as ideias que
em conjunto trocavam e confrontavam contribuíam para a
realização do seu melhor trabalho.
Quem deve realçar dessa série de nomes. Werner
Heisenberg, obviamente, que realizou aqui com Born a melhor parte do
seu trabalho. Mais tarde, quando Erwin Schrodingen publicou um novo
modelo de física básica, foi aqui que se desenrolou a
discussão. Vinha aqui gente de todo mundo. É estranho
falar, nestes termos, de algo que afinal de contas é fruto de um
trabalho aturado.
Será que a física dos anos vinte consistia de teses,
seminários, discussões e polémicas? Sim, assim era
e continua a ser. Aqueles que se juntavam aqui e no silêncio dos
laboratórios acabavam sempre o trabalho com uma
formulação matemática começavam por tentar
resolver os mistérios das partículas
sobre-atómicas, dos electrões e tudo o resto. Imaginem as
confusões que o electrão criava nessa altura: às
2ª, 4ª e 6ª comportavam-se como uma partícula;
às 3ª, 5ª e sábados como uma onda. Como
combinar esses dois aspectos inerentes ao mundo da escala real e
harmonizá-los numa só identidade neste mundo liliputeano
do interior do átomo? Esta era a questão. A
solução não exigia cálculo, mas sim
perspicácia, imaginação ou se quiserem
metafísica.
Recordo uma frase proferida por Max Born, em Inglaterra, muitos anos
mais tarde e que ainda se pode ler na sua autobiografia. Ele disse:
«Estou, agora convencido que a física teórica
é a filosofia moderna». Born quis com isto dizer que as
novas ideias na física correspondem a uma visão diferente
da realidade. O mundo não é um conjunto sólido e
imutável de objectos. Modifica-se sob os nossos olhos. Existe
numa interferência recíproca e o que nos dá a
conhecer tem que ser por nós interpretado. Não há
troca de informação que não exija julgamento.
Será o electrão uma partícula? No átomo de
Born, comporta-se como tal. Mas, em 1924, Bloglie concebeu um belo
modelo ondulatório, onde as órbitas dos electrões
são vulgares, onde um número inteiro exacto de ondas se
fecha em torno do núcleo. Max Born imaginou um comboio de
electrões, cada um sobre uma cambota, de forma a que
colectivamente formassem uma série de curvas Gaussianas, uma
onda de probabilidade.
No comboio para Berlim e nos passeios dos professores pelos bosques de
Gottingham forjava-se uma nova concepção: as unidades
fundamentais de que nos servimos para reconstruir o mundo, sejam elas
quais forem são mais delicadas, mais fugidias, mais
surpreendentes do que aquilo que captamos nas redes delicadas dos
nossos sentidos.
Os passeios pelo bosque atingiram um apogeu brilhante em 1927. No
início desse ano, Werner Heisenberg conseguiu uma
caracterização nova do electrão. «Sim, disse
ele: trata-se de uma partícula que nos fornece, apenas uma
informação limitada». Ou seja, podemos especificar
a sua posição neste instante, mas não lhe podemos
imprimir uma velocidade e direcção específicas ou
inversamente, se insistirmos em projectá-lo numa determinada
direcção com uma determinada velocidade não
conseguiremos determinar com exactidão o ponto de partida nem o
ponto de chegada. Isto poderá parecer uma
caracterização muito imperfeita, mas não é.
Ao defini-la Werner Heisenberg deu-lhe profundidade. A
informação transportada pelo electrão é
limitada na sua totalidade. Por exemplo, a sua velocidade e
posição estão relacionadas, de tal forma, que se
encontram confinados à tolerância do quanto. Eis uma ideia
profunda; uma das maiores ideias científicas, não apenas
do século XX, mas da história da ciência. Werner
Heisenberg chamou-lhe o princípio da incerteza.
De certa forma, é um princípio saudável do
quotidiano. Não se pode pedir ao mundo que seja exacto (…). O
acto de identificação implica um julgamento, uma
área de tolerância ou incerteza. Daí que o
princípio de Heisenberg estabeleça que nenhuns
fenómenos, nem mesmo os atómicos possam ser descritos com
exactidão e sem margem de tolerância. O que dá
profundidade a este princípio é o facto de Heisenberg
especificar o grau de tolerância que se pode alcançar. A
régua graduada é o quanto de Max Plank. No mundo do
átomo a área de incerteza é sempre determinada
pelo quanto.
A designação princípio de incerteza não
será a mais correcta. Quer na ciência, quer fora dela
não somos vagos. O que se passa é que o nosso
conhecimento está confinado a certos parâmetros de
tolerância. Por isso deveríamos antes chamar-lhe
princípio de tolerância (...).
A ciência tem progredido passo a passo, é o empreendimento
mais bem sucedido na evolução do homem, pois parte do
princípio que a troca de informação entre os
homens e entre estes e a natureza apenas existe dentro de certos
limites de tolerância. Mas, em relação ao mundo
real, ele também utilizaria e de uma forma apaixonada o termo
tolerância. Todo o conhecimento, toda a informação
só pode ser partilhada entre os seres humanos de acordo com
regras de tolerância. Isto verifica-se na ciência como na
literatura, na religião como na política, ou em qualquer
forma de pensamento que aspire ao dogma. Para a nossa
geração foi trágico que, aqui, em Gottingham os
cientistas aperfeiçoassem ao máximo o princípio da
tolerância, voltando as costas ao esmagamento irremediável
de tolerância que se verifica em seu redor.
Nuvens negras cobriram os céus da Europa, mas desde há
cem anos que pairava uma em particular sobre Gottingham. Nos
princípios do século XIX Johann Friedrich Blumenbach
reuniu uma colecção de crânios que recebeu dos seus
correspondentes ilustres espalhados pela Europa. Nada no trabalho de
Blumenbach nos poderia sugerir que os crânios viessem a ser
usados em apoio de uma divisão racista da humanidade. Mas o
facto é que após a sua morte a colecção foi
cada vez mais aumentada e veio a tornar-se a base da teoria racista
pan-germânica que o partido nacional-socialista viria a
oficializar ao alcançar o poder. Quando Hitler triunfou em 1933
a tradição cultural da Alemanha foi destruída
quase de um dia para o outro. O comboio de Berlim passou a ser um
símbolo de fuga. A Europa tornara-se hostil à
imaginação e não apenas à
imaginação científica. Era o recuo de toda uma
concepção de cultura: a concepção de que o
conhecimento humano é pessoal e responsável, uma aventura
interminável à beira da incerteza.
Caiu o silêncio como após o julgamento de Galileu. Os
grandes homens partiram para um mundo ameaçado: Max Born. Erwin
Schrodinger. Albert Einstein. Sigmund Freud. Thomas Mann. Bertold
Brecht. Arturo Toscanini. Bruno Walter. Marc Chagall. Enrico Fermi. Leo
Szilard, finalmente volta ao Salk Institute na Califórnia
após longos anos.
O princípio da incerteza fixou de uma vez por todas a
concepção de que todo o conhecimento é limitado.
Uma ironia da História é que ao mesmo tempo que isto se
desenvolvia, crescia na Alemanha de Hitler e sob outras ditaduras, uma
concepção contrária, um princípio de
certeza monstruoso.
Quando o futuro recordar os anos 30 considerá-los-á como
anos de confronto crucial da culturas, tal como tenho vindo a expor. Ou
seja, a ascendência do Homem contra o retrocesso motivado pelas
crenças despóticas na verdade absoluta. Creio que devo
concretizar mais estas abstracções, e para isso recorro a
uma personalidade envolvida profundamente nelas: Leo Szilard cujo
último ano de vida eu acompanhei em muitas tardes de conversa.
Leo Szilard era um Húngaro que fez a sua vida
universitária na Alemanha. Em 1929 publicou um texto importante
e inovador sobre aquilo que hoje em dia se designaria por teoria da
informação: a relação entre o conhecimento,
a natureza e o homem. Mas, por essa altura, Szilard estava já
convencido de que Hitler subiria ao poder e que a guerra seria
inevitável. Tinha duas malas prontas no seu quarto e em 1933
pegou nelas e partiu para Inglaterra.
Acontece que em Setembro de 1933 Lord Rutherford, numa reunião
da British Assossiation, disse algo sobre a impossibilidade da energia
atómica se tornar realidade. Leo Szilard, homem excêntrico
e bem humorado, era o tipo de cientista a quem desagradava qualquer
declaração que utilizasse o termo nunca, particularmente
se proferido por um distinto colega. Por isso decidiu meditar acerca do
problema. É ele que nos conta a história de uma forma
que, para quem o conhecer o retrata fielmente. Vivia no hotel Strand
Palace, pois adorava viver em hotéis. Um dia ao dirigir-se a
pé para o emprego no hospital Bart`s, ao chegar à
Southampton Row parou no sinal vermelho (e esta é a única
parte da história que me parece improvável, pois nunca o
vi parar em nenhum sinal vermelho). Mas, continuando a história:
antes do sinal mudar para verde imaginou que se atingisse um
átomo com um neutrão e ele se dividisse libertando dois,
teríamos uma reacção em cadeia. Elaborou uma
memória descritiva para registo de uma patente que veio a ser
arquivada em 1934 e que continha a expressão
reacção em cadeia.
Chegamos agora, a um aspecto da personalidade de Szilard,
característico dos cientistas da época, mas que nele era
particularmente vincado. Quis manter a sua patente secreta, pretendia
impedir que a ciência fosse indevidamente utilizada e para isso
confiou a patente ao Almirantado Britânico para que não
fosse publicada antes do fim da guerra. Entretanto a guerra tornava-se
cada vez mais inevitável.
A um ritmo hoje por vezes esquecido a física nuclear e Hitler
progrediam simultaneamente passo a passo. No início de 1939
Szilard escreveu a Joliot Curie perguntando-lhe se seria
possível exigir a proibição da
publicação. Ele tentou impedir a publicação
da patente. Finalmente, em Agosto de 1939, escreveu uma carta, que
Einstein também assinou enviando-a ao Presidente Roosevelt.
Nessa carta dizia: «Temos a energia nuclear. A guerra é
inevitável. Compete ao Presidente decidir o que os cientistas
devem fazer com ela».
Porém, Szilard não desistiu. Quando a guerra em 1945 foi
ganha e compreendeu que a bomba estava a ser fabricada para ser usada
contra os Japoneses afirmou o seu protesto, sempre que lhe foi
possível. Escrevia memorandos após memorandos que enviava
ao Presidente Roosevelt. Tudo o que pretendia era o seguinte: a bomba
deveria ser experimentada perante os japoneses e com uma
audiência internacional, de forma que aqueles tomassem
conhecimento da mesma, rendendo-se antes de morrerem pessoas. Como
sabem, Szilard falhou e com ele falhou também a comunidade de
cientistas. A primeira bomba atómica foi lançada sobre
Hiroshima no Japão a 6 de Agosto de 1945 às 8 horas e 15
minutos da manhã.
Pouco depois de regressar de Hiroshima, ouvi alguém afirmar na
presença de Szilard que o drama dos cientistas era que as suas
descobertas fossem usadas para a destruição. Szilard,
mais do que ninguém, tinha o direito de responder, replicou que
isso não era o drama dos cientistas mas sim o drama da
espécie humana.
O dilema humano tem duas componentes: uma é a crença em
que os fins justificam os meios. Essa filosofia de autómatos,
essa surdez deliberada ao sofrimento que se tornou monstruosa na
máquina de guerra. A outra, é a traição ao
espírito humano, a afirmação do dogma que fecha as
mentes e transforma uma nação ou uma
civilização num exército de fantasmas obedientes
ou torturados.
Há quem diga que a ciência irá desumanizar as
pessoas e transformá-las em números. Isso é falso,
tragicamente falso. Senão vejam: isto são os fornos
crematórios do campo de concentração de Auschwitz
— aqui é que as pessoas eram transformadas em números.
Para este fosso foram atiradas as cinzas de cerca de quatro
milhões de pessoas. Mas não foi o gás que as
matou. Foi a arrogância, foi o dogma, foi a ignorância.
Isto é o que acontece quando as pessoas pensam possuir a verdade
absoluta… Isto é o que os homens fazem quando aspiram ao
conhecimento dos deuses… A ciência é uma forma de
conhecimento extremamente humana. Colocamo-nos sempre nos limites do
conhecido e a esperança leva-nos sempre a tactear mais
além. Na ciência cada julgamento é pessoal e
encontra-se sempre à beira do erro.
A ciência é um louvor ao que conseguimos conhecer apesar
de sermos falíveis.
E termino com as palavras de Oliver Cromwell: «Rogo-vos, pelas
chagas de Cristo, admiti que podeis estar errados».
Estou aqui, como sobrevivente e como testemunha. Devo-o, como
cientista, ao meu amigo Szilard e, como ser humano, aos muitos
familiares meus que aqui pereceram. Temos de nos libertar da
ânsia de conhecimento e poder absolutos. Temos de diminuir a
distância entre a tomada de decisões e os actos humanos.
Temos de tocar as pessoas. |