The ascent of man
Conhecimento ou certeza?
Jacob Bronowski

Dir-se-ia que já não é novo...
Parece-me, evidente que não é inglês.
Tem a cara mais redonda que a maioria dos ingleses.
Deve ser um continental. Talvez, mesmo de leste.
As linhas da sua face poderiam ser de agonia.
De início, pensei que fossem cicatrizes.
Não tem uma expressão feliz.

Um dos objectivos das ciências físicas tem sido o de retratar fielmente o mundo material e um dos êxitos da física no século XX foi provar que esse objectivo é inatingível.

Tomemos um exemplo muito concreto: a face humana. Esta é a cara de Stephen Borgrajewicz. Tal como eu nascido na Polónia. Ei-lo retratado pelo artista polaco Feliks Topolski. Sabemos que este tipo de pinturas, mais do que fixar uma face, exploram-na. O artista traça os pormenores quase como se tacteasse, e cada linha que acrescenta, reforça o retrato, mas nunca o torna definitivo. Aceitamos isto como o método do artista. Porém, a física actual mostrou-nos que este é também o único método de conhecimento. Não existe conhecimento absoluto e aqueles que o reivindicam, quer sejam cientistas ou dogmáticos abrem as portas à tragédia.

Toda a informação é imperfeita e temos que a tratar com humildade. Esta é a condição humana e também a mensagem da Física Quântica. Rigorosamente.

Pergunto: até onde pode ir a exactidão e o pormenor da nossa observação com os melhores instrumentos do mundo ou mesmo com o instrumento perfeito, se algum dia o conseguíssemos fabricar? A observação do pormenor pode não se limitar àquilo que vemos com a luz visível, já que do vermelho ao violeta, vai apenas, aproximadamente, uma oitava na escala das radiações invisíveis. Existe todo um quadro de informação entre os maiores comprimentos de onda, as ondas rádio (as notas mais baixas) e os menores comprimentos de onda, os raios X, e para lá delas as notas mais agudas. Uma a uma, vamos apresentá-las servindo-nos da face humana.

As ondas invisíveis de maior comprimento são as ondas de rádio, cuja existência foi comprovada por Heinrich Hertz, há aproximadamente 100 anos. Por serem as mais longas, são também as mais grosseiras. Um radar trabalhando num comprimento de onda de poucos metros não detectará a face, a não ser que esta também tenha alguns metros de largura. Só à medida que diminuímos o comprimento de onda começam a aparecer alguns pormenores da cabeça gigantesca. A uma fracção de metros, as orelhas e no limite das ondas rádio, a alguns centímetros, os primeiros sinais do homem ao lado da estátua.

Vamos, agora, observar a cara do homem através de uma câmara sensível às radiações com menos de 1 milímetro: no infra-vermelho.
Foram descobertas pelo astrónomo William Herschell, em 1800, ao notar o aquecimento produzido quando focalizava o seu telescópio para lá da luz vermelha. Os raios infra-vermelhos são raios térmicos. A chapa da câmara transforma-os em luz, fazendo com que os mais quentes apareçam a azul e os mais frios a vermelho ou escuro. Podemos observar os principais traços fisionómicos da face: os olhos, a boca, o nariz e reparem na corrente quente que sai das narinas. Sim, mostra-nos algo sobre a face humana, mas nada de pormenorizado. E os seus menores comprimentos de onda, centésimos de milímetro, as tonalidades do infra-vermelho transformam-se gradualmente em vermelho visível. O filme é sensível a ambos e a face ganha vida. Já não é, apenas, um homem. É o homem que nós conhecemos. A luz branca revela-o à vista, claramente e em pormenor: os pequenos pêlos, os poros da pele, uma cicatriz aqui, um vaso sanguíneo rebentado ali. A luz branca é uma mistura de comprimentos de onda: do vermelho ao laranja, ao amarelo, ao verde, ao azul e ao violeta, o menor dos comprimentos de onda visíveis.

Deveríamos ser capazes de observar mais pormenores com as ondas violeta, curtas, do que as ondas vermelhas, longas, mas na prática, a diferença é de cerca de uma oitava, não nos serve de muito.

O pintor analisa a face e dá os traços fisionómicos, separa as cores, amplia a imagem.

É natural que perguntemos: não deveria o cientista usar o microscópio? Sim, deveria. Mas temos de compreender que o microscópio amplia a imagem mas não a consegue aperfeiçoar. A nitidez do pormenor é determinada pelo comprimento de onda da luz. Com uma ampliação superior a 200 vezes, podemos isolar uma célula individual da pele. Mas para obter, ainda mais pormenores continuamos a precisar de um comprimento de onda ainda mais curto.

Sendo assim, o passo seguinte é a luz ultra-violeta com um comprimento de onda de um décimo de milésimo de milímetro ou menos, ou seja, 10 vezes mais curta que a luz visível. Se os nossos olhos pudessem ver em ultra-violeta, mostrar-nos-iam esta paisagem fluorescente e fantasmagórica. O que se passa é que em qualquer comprimento de onda as radiações só podem ser interceptadas por objectos de dimensões, pelo menos tão grande como o próprio comprimento de onda. Um objecto mais pequeno permanecerá invisível. O microscópio de ultra-violetas com uma ampliação de 3500 vezes, leva-nos ao interior da célula, até ao nível dos cromossomas. Mas este é o limite, nenhuma luz poderá tornar visíveis os genes no interior do cromossoma.

Passemos aos Raios X. Estes raios não podem ser focados e por isso não se pode construir um microscópio de raios X. Temos de nos contentar em dispará-los contra o objecto e obter uma espécie de sombra. Agora, o pormenor depende da sua penetração. A estrutura óssea sob a pele torna-se visível e vemos por exemplo que este homem perdeu os dentes. Esta forma de sondar o corpo motivou o entusiasmo pelos raios X, logo após a sua descoberta por Rontgen. Foi ele, o herói, que ganhou o 1º Nobel em 1901.

Alguns acasos felizes na natureza permitem-nos, por vezes, ir mais longe. Podemos traçar o mapa dos átomos de um cristal, já que o seu espaçamento é regular. Esta é a disposição dos átomos de uma espiral de ADN. Um gene é assim. Este método foi inventado em 1912 por Max von Laue e constituiu a 1ª prova que os átomos são reais.

Resta-nos mais um passo: o microscópio de electrões, no qual os raios são tão concentrados que não sabemos se lhes devemos chamar ondas ou partículas. Os electrões são disparados contra um objecto e desenham o seu contorno, à semelhança de um atirador de facas numa feira. Eis o menor objecto até hoje observado: um átomo isolado de tório. É espectacular. Contudo, nem mesmo os electrões mais enérgicos proporcionam contornos nítidos. A imagem perfeita está ainda tão remota como as estrelas distantes.

Eis-nos que enfrentamos o paradoxo crucial do conhecimento: ano após ano, inventámos instrumentos de maior precisão com os quais observamos a natureza com mais pormenor, mas ao analisarmos as observações, estas permanecem imperfeitas. É como se corrêssemos atrás de algo que se afasta mais de nós, para o infinito, de cada vez que nos aproximamos.

Vejamo-lo no contexto de um observatório astronómico. Eis o observatório construído para Karl Friedrich Gauss, em Gottingham. Ao longo da sua existência os instrumentos astronómicos aperfeiçoaram-se. Ao observarmos a posição de uma estrela, temos a impressão de estar, cada vez mais perto de a determinar com precisão. Mas comparando as observações individuais ficamos surpreendidos e envergonhados ao verificar que elas divergem entre si, como sempre. Esperávamos que os erros humanos desaparecessem e que conseguíssemos nós próprios ter a visão de Deus. Mas, afinal revela-se impossível erradicar o erro das observações e isto verifica-se com as estrelas, com os átomos, ou mesmo ao observarmos o retrato de alguém ou ao ouvirmos um relato dum discurso qualquer.

Gauss compreendeu-o, com aquele seu génio maravilhoso e juvenil que manteve quase até à morte, com 80 anos. Com apenas 18 anos, ao chegar aqui a Gottingham para entrar na universidade, tinha já resolvido o problema de como obter a melhor estimativa de uma série de observações com erros acidentais. Quando se observa uma estrela sabe-se que existem inúmeros factores de erro. Daí, que sejam efectuadas várias leituras, na esperança de que a melhor estimativa da posição da estrela seja a leitura média ou seja o centro da dispersão. Até aqui é óbvio. Mas Gauss foi mais além. E procurou saber o que nos indica a dispersão dos erros e idealizou a curva Gaussiana, na qual a dispersão é traduzida pelo desvio ou alargamento da curva. Após, o que foi ainda mais longe.

A dispersão define uma área de incerteza. Não podemos concluir que a posição real seja o centro. Apenas podemos afirmar que fica na área de incerteza. Gauss detestava filósofos que afirmavam possuir uma via para o conhecimento mais perfeita do que a observação. Um exemplo, entre muitos, era Friedrich Hegel. Um filósofo, que devo confessar, detesto particularmente, e sentia-me, aliás, orgulhoso por este meu sentimento ser partilhado por alguém de maior estatura como Gauss.

Em 1800, Hegel publicou uma tese, se assim se pode chamar, provando que apesar da definição dos planetas ter evoluído desde a antiguidade, filosoficamente deveriam, apenas existir sete planetas. Bem, Gauss não foi o único a saber como responder a isso. Shakespeare já o tinha feito muito antes, num passo extraordinário do rei Elias: «O bobo, claro, diz ao rei: a razão pela qual as sete estrelas são apenas sete é interessante». O rei abanou solenemente a cabeça e respondeu: «é porque não são oito». E o bobo retorquiu: «Sim, de facto, vós também faríeis um belo bobo, tal como Hegel.». No dia 1 de Janeiro de 1801, antes de secar a tinta da dissertação de Hegel era descoberto Ceres, o oitavo planeta. A história é pródiga em ironias. Como efeito retardado da curva de Gauss, após a sua morte, descobrimos que não existe uma visão de Deus e que os erros fazem parte da natureza do conhecimento humano. É uma ironia que essa descoberta venha a ser feita, aqui, em Gottingham.

As velhas cidades universitárias são todas maravilhosamente parecidas: Gottingham é semelhante a Cambridge, na Inglaterra ou Yale nos Estados Unidos, provinciana e retirada. Quem para aqui vem apenas procura a companhia dos professores, os quais acreditam ser este o centro do mundo. Uma inscrição no Rathskeller reza o seguinte: «Fora de Gottingham não existe vida». O símbolo da universidade é uma guardadora de gansos, descalça, cuja estátua todos os estudantes beijam quando obtêm o diploma. A universidade é a Meca à qual os estudantes se dirigem com uma fé não absoluta. É importante que os estudantes transportem para os seus estudos uma certa dose de irreverência descontraída. Não estão aqui para adorar os conhecimentos, mas para os questionar. Como noutras universidades, após o almoço, os parques de Gottingham são percorridos em longos passeios pelos professores e os estudantes ficam embevecidos quando são convidados para os acompanhar.

Talvez, no passado, Gottingham tenha estado meia adormecida. As pequenas cidades universitárias alemãs são anteriores à unificação do país, daí que estejam eivadas de burocracia local. Mesmo após 1918, mantinham-se mais conformistas que as suas congéneres estrangeiras. O elo de ligação entre Gottingham e o mundo exterior era o comboio. Nele chegavam de Berlim e do estrangeiro, visitantes desejosos de permutar as ideias novas, nas fronteiras móveis da física. Em Gottingham era comum afirmar-se que a ciência tinha nascido no comboio para Berlim, já que era aí que as pessoas discutiam, tinham novas ideias e as contestavam.

Durante a 1ª Guerra Mundial a ciência foi dominada, em Gottingham, como em todo o lado, pela relatividade. Mas em 1921, foi nomeado professor Max Born, que iniciou uma série de seminários que atraíram aqui toda a gente interessada pela física atómica. Curiosamente, Max Born quando foi nomeado tinha quase 40 anos. A maioria dos físicos realizaram os seus melhores trabalhos antes dos 30 anos, os matemáticos muito antes e os biólogos, talvez, um pouco mais tarde. Mas Born possuía um extraordinário dom socrático: atraía os jovens. Extraía deles o melhor e as ideias que em conjunto trocavam e confrontavam contribuíam para a realização do seu melhor trabalho.

Quem deve realçar dessa série de nomes. Werner Heisenberg, obviamente, que realizou aqui com Born a melhor parte do seu trabalho. Mais tarde, quando Erwin Schrodingen publicou um novo modelo de física básica, foi aqui que se desenrolou a discussão. Vinha aqui gente de todo mundo. É estranho falar, nestes termos, de algo que afinal de contas é fruto de um trabalho aturado.

Será que a física dos anos vinte consistia de teses, seminários, discussões e polémicas? Sim, assim era e continua a ser. Aqueles que se juntavam aqui e no silêncio dos laboratórios acabavam sempre o trabalho com uma formulação matemática começavam por tentar resolver os mistérios das partículas sobre-atómicas, dos electrões e tudo o resto. Imaginem as confusões que o electrão criava nessa altura: às 2ª, 4ª e 6ª comportavam-se como uma partícula; às 3ª, 5ª e sábados como uma onda. Como combinar esses dois aspectos inerentes ao mundo da escala real e harmonizá-los numa só identidade neste mundo liliputeano do interior do átomo? Esta era a questão. A solução não exigia cálculo, mas sim perspicácia, imaginação ou se quiserem metafísica.

Recordo uma frase proferida por Max Born, em Inglaterra, muitos anos mais tarde e que ainda se pode ler na sua autobiografia. Ele disse: «Estou, agora convencido que a física teórica é a filosofia moderna». Born quis com isto dizer que as novas ideias na física correspondem a uma visão diferente da realidade. O mundo não é um conjunto sólido e imutável de objectos. Modifica-se sob os nossos olhos. Existe numa interferência recíproca e o que nos dá a conhecer tem que ser por nós interpretado. Não há troca de informação que não exija julgamento.

Será o electrão uma partícula? No átomo de Born, comporta-se como tal. Mas, em 1924, Bloglie concebeu um belo modelo ondulatório, onde as órbitas dos electrões são vulgares, onde um número inteiro exacto de ondas se fecha em torno do núcleo. Max Born imaginou um comboio de electrões, cada um sobre uma cambota, de forma a que colectivamente formassem uma série de curvas Gaussianas, uma onda de probabilidade.
No comboio para Berlim e nos passeios dos professores pelos bosques de Gottingham forjava-se uma nova concepção: as unidades fundamentais de que nos servimos para reconstruir o mundo, sejam elas quais forem são mais delicadas, mais fugidias, mais surpreendentes do que aquilo que captamos nas redes delicadas dos nossos sentidos.

Os passeios pelo bosque atingiram um apogeu brilhante em 1927. No início desse ano, Werner Heisenberg conseguiu uma caracterização nova do electrão. «Sim, disse ele: trata-se de uma partícula que nos fornece, apenas uma informação limitada». Ou seja, podemos especificar a sua posição neste instante, mas não lhe podemos imprimir uma velocidade e direcção específicas ou inversamente, se insistirmos em projectá-lo numa determinada direcção com uma determinada velocidade não conseguiremos determinar com exactidão o ponto de partida nem o ponto de chegada. Isto poderá parecer uma caracterização muito imperfeita, mas não é. Ao defini-la Werner Heisenberg deu-lhe profundidade. A informação transportada pelo electrão é limitada na sua totalidade. Por exemplo, a sua velocidade e posição estão relacionadas, de tal forma, que se encontram confinados à tolerância do quanto. Eis uma ideia profunda; uma das maiores ideias científicas, não apenas do século XX, mas da história da ciência. Werner Heisenberg chamou-lhe o princípio da incerteza.

De certa forma, é um princípio saudável do quotidiano. Não se pode pedir ao mundo que seja exacto (…). O acto de identificação implica um julgamento, uma área de tolerância ou incerteza. Daí que o princípio de Heisenberg estabeleça que nenhuns fenómenos, nem mesmo os atómicos possam ser descritos com exactidão e sem margem de tolerância. O que dá profundidade a este princípio é o facto de Heisenberg especificar o grau de tolerância que se pode alcançar. A régua graduada é o quanto de Max Plank. No mundo do átomo a área de incerteza é sempre determinada pelo quanto.

A designação princípio de incerteza não será a mais correcta. Quer na ciência, quer fora dela não somos vagos. O que se passa é que o nosso conhecimento está confinado a certos parâmetros de tolerância. Por isso deveríamos antes chamar-lhe princípio de tolerância (...).

A ciência tem progredido passo a passo, é o empreendimento mais bem sucedido na evolução do homem, pois parte do princípio que a troca de informação entre os homens e entre estes e a natureza apenas existe dentro de certos limites de tolerância. Mas, em relação ao mundo real, ele também utilizaria e de uma forma apaixonada o termo tolerância. Todo o conhecimento, toda a informação só pode ser partilhada entre os seres humanos de acordo com regras de tolerância. Isto verifica-se na ciência como na literatura, na religião como na política, ou em qualquer forma de pensamento que aspire ao dogma. Para a nossa geração foi trágico que, aqui, em Gottingham os cientistas aperfeiçoassem ao máximo o princípio da tolerância, voltando as costas ao esmagamento irremediável de tolerância que se verifica em seu redor.

Nuvens negras cobriram os céus da Europa, mas desde há cem anos que pairava uma em particular sobre Gottingham. Nos princípios do século XIX Johann Friedrich Blumenbach reuniu uma colecção de crânios que recebeu dos seus correspondentes ilustres espalhados pela Europa. Nada no trabalho de Blumenbach nos poderia sugerir que os crânios viessem a ser usados em apoio de uma divisão racista da humanidade. Mas o facto é que após a sua morte a colecção foi cada vez mais aumentada e veio a tornar-se a base da teoria racista pan-germânica que o partido nacional-socialista viria a oficializar ao alcançar o poder. Quando Hitler triunfou em 1933 a tradição cultural da Alemanha foi destruída quase de um dia para o outro. O comboio de Berlim passou a ser um símbolo de fuga. A Europa tornara-se hostil à imaginação e não apenas à imaginação científica. Era o recuo de toda uma concepção de cultura: a concepção de que o conhecimento humano é pessoal e responsável, uma aventura interminável à beira da incerteza.

Caiu o silêncio como após o julgamento de Galileu. Os grandes homens partiram para um mundo ameaçado: Max Born. Erwin Schrodinger. Albert Einstein. Sigmund Freud. Thomas Mann. Bertold Brecht. Arturo Toscanini. Bruno Walter. Marc Chagall. Enrico Fermi. Leo Szilard, finalmente volta ao Salk Institute na Califórnia após longos anos.

O princípio da incerteza fixou de uma vez por todas a concepção de que todo o conhecimento é limitado. Uma ironia da História é que ao mesmo tempo que isto se desenvolvia, crescia na Alemanha de Hitler e sob outras ditaduras, uma concepção contrária, um princípio de certeza monstruoso.

Quando o futuro recordar os anos 30 considerá-los-á como anos de confronto crucial da culturas, tal como tenho vindo a expor. Ou seja, a ascendência do Homem contra o retrocesso motivado pelas crenças despóticas na verdade absoluta. Creio que devo concretizar mais estas abstracções, e para isso recorro a uma personalidade envolvida profundamente nelas: Leo Szilard cujo último ano de vida eu acompanhei em muitas tardes de conversa. Leo Szilard era um Húngaro que fez a sua vida universitária na Alemanha. Em 1929 publicou um texto importante e inovador sobre aquilo que hoje em dia se designaria por teoria da informação: a relação entre o conhecimento, a natureza e o homem. Mas, por essa altura, Szilard estava já convencido de que Hitler subiria ao poder e que a guerra seria inevitável. Tinha duas malas prontas no seu quarto e em 1933 pegou nelas e partiu para Inglaterra.

Acontece que em Setembro de 1933 Lord Rutherford, numa reunião da British Assossiation, disse algo sobre a impossibilidade da energia atómica se tornar realidade. Leo Szilard, homem excêntrico e bem humorado, era o tipo de cientista a quem desagradava qualquer declaração que utilizasse o termo nunca, particularmente se proferido por um distinto colega. Por isso decidiu meditar acerca do problema. É ele que nos conta a história de uma forma que, para quem o conhecer o retrata fielmente. Vivia no hotel Strand Palace, pois adorava viver em hotéis. Um dia ao dirigir-se a pé para o emprego no hospital Bart`s, ao chegar à Southampton Row parou no sinal vermelho (e esta é a única parte da história que me parece improvável, pois nunca o vi parar em nenhum sinal vermelho). Mas, continuando a história: antes do sinal mudar para verde imaginou que se atingisse um átomo com um neutrão e ele se dividisse libertando dois, teríamos uma reacção em cadeia. Elaborou uma memória descritiva para registo de uma patente que veio a ser arquivada em 1934 e que continha a expressão reacção em cadeia.

Chegamos agora, a um aspecto da personalidade de Szilard, característico dos cientistas da época, mas que nele era particularmente vincado. Quis manter a sua patente secreta, pretendia impedir que a ciência fosse indevidamente utilizada e para isso confiou a patente ao Almirantado Britânico para que não fosse publicada antes do fim da guerra. Entretanto a guerra tornava-se cada vez mais inevitável.

A um ritmo hoje por vezes esquecido a física nuclear e Hitler progrediam simultaneamente passo a passo. No início de 1939 Szilard escreveu a Joliot Curie perguntando-lhe se seria possível exigir a proibição da publicação. Ele tentou impedir a publicação da patente. Finalmente, em Agosto de 1939, escreveu uma carta, que Einstein também assinou enviando-a ao Presidente Roosevelt. Nessa carta dizia: «Temos a energia nuclear. A guerra é inevitável. Compete ao Presidente decidir o que os cientistas devem fazer com ela».

Porém, Szilard não desistiu. Quando a guerra em 1945 foi ganha e compreendeu que a bomba estava a ser fabricada para ser usada contra os Japoneses afirmou o seu protesto, sempre que lhe foi possível. Escrevia memorandos após memorandos que enviava ao Presidente Roosevelt. Tudo o que pretendia era o seguinte: a bomba deveria ser experimentada perante os japoneses e com uma audiência internacional, de forma que aqueles tomassem conhecimento da mesma, rendendo-se antes de morrerem pessoas. Como sabem, Szilard falhou e com ele falhou também a comunidade de cientistas. A primeira bomba atómica foi lançada sobre Hiroshima no Japão a 6 de Agosto de 1945 às 8 horas e 15 minutos da manhã.

Pouco depois de regressar de Hiroshima, ouvi alguém afirmar na presença de Szilard que o drama dos cientistas era que as suas descobertas fossem usadas para a destruição. Szilard, mais do que ninguém, tinha o direito de responder, replicou que isso não era o drama dos cientistas mas sim o drama da espécie humana.

O dilema humano tem duas componentes: uma é a crença em que os fins justificam os meios. Essa filosofia de autómatos, essa surdez deliberada ao sofrimento que se tornou monstruosa na máquina de guerra. A outra, é a traição ao espírito humano, a afirmação do dogma que fecha as mentes e transforma uma nação ou uma civilização num exército de fantasmas obedientes ou torturados.

Há quem diga que a ciência irá desumanizar as pessoas e transformá-las em números. Isso é falso, tragicamente falso. Senão vejam: isto são os fornos crematórios do campo de concentração de Auschwitz — aqui é que as pessoas eram transformadas em números. Para este fosso foram atiradas as cinzas de cerca de quatro milhões de pessoas. Mas não foi o gás que as matou. Foi a arrogância, foi o dogma, foi a ignorância.

Isto é o que acontece quando as pessoas pensam possuir a verdade absoluta… Isto é o que os homens fazem quando aspiram ao conhecimento dos deuses… A ciência é uma forma de conhecimento extremamente humana. Colocamo-nos sempre nos limites do conhecido e a esperança leva-nos sempre a tactear mais além. Na ciência cada julgamento é pessoal e encontra-se sempre à beira do erro.

A ciência é um louvor ao que conseguimos conhecer apesar de sermos falíveis.

E termino com as palavras de Oliver Cromwell: «Rogo-vos, pelas chagas de Cristo, admiti que podeis estar errados».

Estou aqui, como sobrevivente e como testemunha. Devo-o, como cientista, ao meu amigo Szilard e, como ser humano, aos muitos familiares meus que aqui pereceram. Temos de nos libertar da ânsia de conhecimento e poder absolutos. Temos de diminuir a distância entre a tomada de decisões e os actos humanos.

Temos de tocar as pessoas.




Texto compilado a partir dos documentos:

  — Livro: Bronowski, J. (1973). The ascent of man. Boston. Lite, Brow and Company.

  — Videograma: Bronowski, J. «Chapter 11: Knowledge or certainty», 353-378, integrado na série para televisão: The ascent of man. Duração 47 minutos (versão portuguesa: «Capítulo 11: Conhecimento ou certeza?», integrado na série para televisão: A origem do homem).

Compilação: Isabel Portela
Revisão: Alexandre Ramires e Maria Helena Damião