A boneca de trapo


      Foi a primeira prenda que Maria se lembra ter recebido.
      A mãe trouxera da feira, embrulhada num xailito de fazenda, uma pequena boneca de trapo. Lembra-se perfeitamente da alegria que sentiu ao recebe-la e dos beijos com que recompensou a mãe.
      A boneca era parecida com ela, tinha um sorriso rasgado no rosto moreno e uns longos cabelos negros, que ao contrario de Maria estavam sempre penteados e limpos. Lembra-se de construir belos palácios de côdeas de pinheiro e caruma, onde a sua boneca era princesa e rainha.
      Certa vez, os pais de Maria receberam a visita de um padre que passava pela Aldeia e convidaram-no a sentar-se com eles na cozinha. Maria lembra-se vagamente das bochechas encarniçadas do padre e dos anéis que lhe enchiam os dedos, dedos ásperos que lhe apertaram o nariz...
      Lembra-se da gargalhada do padre quando ele lhe perguntou o que queria ser quando fosse grande, e ela respondeu escondendo a cara com a boneca. Lembra-se do padre lhe dizer que as bonecas não são ninguém e que ela deveria ser como todas as outras meninas, que queriam um dia ser como as mães ou as tias...
      Lembra-se dos seus pais concordarem as palavras do padre e recorda-se que foram eles a persuadi-la a entregar a boneca ao senhor padre, fê-lo com má vontade e desconfiança. Lembra-se, como se fosse hoje, das gargalhadas do padre e dos sorrisos confusos dos seus pais e, vezes sem conta tentou esquecer o sorriso de trapo da boneca a ser consumido pela lareira.
      Há memórias de criança que nos ardem a vida inteira e são elas as responsáveis de muitas vidas de trapo se tornarem autênticos Infernos...

Pedro Martins 99



© Zelincú &Escarabatafuncho Productions 99